Mulheres, <br>vítimas de perseguição penal

O PCP tem vindo a lutar desde 1982 pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) e pelo consequente fim do grave problema de saúde pública que constitui o aborto clandestino. Em 1998, a Assembleia da República chegou mesmo a aprovar, na generalidade, um projecto-lei de despenalização, cujo processo legislativo viria a ser interrompido pela convocação de um referendo sobre a matéria, acordado da noite para o dia entre os líderes de então do PS e do PSD. Este referendo não teve qualquer valor vinculativo, visto que votaram apenas 31,9 por cento dos eleitores. Para os comunistas, havendo hoje uma maioria parlamentar favorável, a despenalização da IVG é a única forma de pôr fim às sucessivas investigações, devassas, humilhações e condenações de mulheres que nos últimos anos se repetiram em vários processos judiciais em Portugal.

Em 1982, o PCP tomou a iniciativa de lançar o primeiro grande debate público sobre o aborto, quando se estimavam em 100 mil os abortos clandestinos anuais

A criminalização do aborto em Portugal é a face mais oculta e mais cruel das profundas contradições e antagonismos em se reconhecer, na vida e na lei, a capacidade e legitimidade das mulheres decidirem o que fazer na sua vida pública e privada.
Indissociável da luta das mulheres pelo exercício dos seus direitos – económicos, sociais, políticos e culturais – a luta pela despenalização do aborto e contra os retrocessos que as forças mais reaccionárias e obscurantistas tentam impor são combates que vão continuar.
Quando, em 1982, o PCP tomou a iniciativa do primeiro debate sobre esta matéria, estimava-se que, em Portugal, eram feitos, por ano, mais de 100 mil abortos clandestinos. Actualmente, esse número situa-se entre os 20 e os 40 mil abortos, o que evidencia que as mulheres nos últimos 30 anos têm vindo a utilizar formas seguras para prevenir gravidezes indesejadas.
Estas novas possibilidades foram abertas com o 25 de Abril e com a institucionalização das consultas de planeamento familiar a partir dos centros de saúde, informação e acesso à contracepção, utilizando crescentemente formas seguras de planeamento familiar e de garantir uma vivência sexual saudável.
Mas muito ainda falta a fazer. A consolidação de um caminho que generalize a educação sexual nas escolas, que amplie as consultas de planeamento familiar e a acessibilidade à contracepção é uma aposta decisiva e indispensável, sendo necessário dar uma especial atenção às camadas mais jovens.
No entanto, os números continuam a demonstrar que não existem métodos de controlo da fertilidade cem por cento seguros, podendo ocorrer falhas e gravidezes não desejadas. Desesperadas, as mulheres decidem recorrer ao aborto em Portugal ou no estrangeiro. Muitas, principalmente as que não têm meios financeiros para ir para as clínicas de Espanha, continuam a chegar aos hospitais com sequelas de aborto clandestino.
Sendo que a actual lei não responde às necessidades das mulheres e da sociedade, são as estatísticas a mostrar que a incidência de abortos por violação é desprezável e muito baixa nos casos de malformação.
Os dados estatísticos oficiais em 1994 até 2003, obtidos com base nos registos dos centros públicos e privados espanhóis que praticam a IVG – entre os quais se encontram os abortos praticados às mulheres portuguesas que aí se deslocam para este fim –, mostram que apenas 0,02 por cento se deveram a casos de violação, sendo 2,83 por cento do total os abortos devidos a malformação dos fetos.
Mais de 95 por cento dos abortos fazem-se por razões que têm a ver com a saúde física ou psicológica da mulher. Este motivo, que também integra a actual lei portuguesa, é interpretado abertamente em Espanha, de forma a incluir abortos feitos por causas sociais, familiares ou económicas.
Outro dado curioso é que o nosso país continua a ser o segundo da União Europeia com mais casos de gravidez entre adolescentes, sendo o Reino Unido o primeiro. Polónia, Malta, Irlanda e Portugal são, entretanto, os países europeus com as leis mais restritas da União Europeia. No entanto, é apenas o Estado português, através dos seus sucessivos governos, que leva a tribunal médicos, enfermeiros, e as mulheres que tenham recorrido ao aborto.
Efectuar um aborto com consentimento da mulher é punível com penas até três anos de prisão. A mulher que recorre ao aborto também pode incorrer numa pena até três anos de prisão.

Mais de 30 anos de indecisão

Passados mais de 30 anos de democracia, várias oportunidades foram perdidas no encarar desta dura realidade – o aborto clandestino. Para os comunistas, Portugal não pode continuar a situar-se entre os países que negam à mulher a liberdade de decidir em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, componente fundamental do direito à igualdade.
Em Março de 2004, a Assembleia da República, em debate agendado pelo PCP, discutiu mais uma vez esta questão. Nesse debate, em que se votaram em primeiro lugar as iniciativas de despenalização e depois as iniciativas de convocação de referendo, ficou aliás expressa uma ampla convergência dos partidos então na oposição sobre esta matéria. O debate e a votação foi essencial para desmascarar a hipocrisia dos partidos da direita, com o PSD preso a um acordo pós-eleitoral com o CDS-PP em que garantia a não aprovação de qualquer iniciativa, mas também para confirmar a total legitimidade da Assembleia da República para proceder à alteração legislativa em causa.
Passados alguns meses, em Março de 2005, já com o PS no Governo, o PCP voltou a apresentar um Projecto-lei que correspondia, no essencial, aos projectos apresentados na legislatura anterior. Quando se podia pensar que havia condições políticas para mudar a lei, o PS, aliado com o BE, optou para passar a responsabilidade da alteração da lei para os cidadãos, adiando a aprovação de uma lei de despenalização do aborto, que podia viabilizar-se através de uma ampla maioria parlamentar.
As apreensões dos comunistas face a esta postura do PS e do BE confirmaram-se quando, em Junho desse ano, o Presidente da República decidiu não convocar o referendo.
«A decisão agora anunciada pelo Presidente da República coloca na ordem do dia a urgente e necessária aceleração do processo legislativo iniciado a 20 de Abril com a aprovação de um Projecto-Lei que contou com os votos favoráveis de uma ampla maioria de deputados do PS, do PCP, do BE e do PEV», afirmou, no dia 2 de Maio, desse ano, Fernanda Mateus, da Comissão Política do PCP.
Perante esta decisão, com a eminente manutenção da dramática e desumana situação a que as mulheres portuguesas se encontram sujeitas, o PCP desafiou o PS e o BE «para que, abandonando os caminhos tortuosos em que enredaram a questão, se disponibilizem sem demoras para retomarem o processo legislativo e fazerem aprovar uma nova lei que em definitivo despenalize o aborto».
Durante esta longa jornada de justa reivindicação, o PCP já apresentou e viu rejeitados todos os seus projectos de lei sobre o aborto em sucessivos debates. Mesmo considerando-os insuficientes, votou a favor dos projectos-lei do PS em 1984, 1997, 1998, 2004 e 2005.
Existe assim uma lei aprovada na generalidade, mas não existe vontade de retomar o processo legislativo. Entretanto, em Setembro de 2006, esta lei poderá ser novamente votada em referendo. Cabe às mulheres e a toda a sociedade portuguesa não deixar cair esta questão e continuar a lutar por uma nova lei do aborto mais justa para todas, visto não haver vontade política de todos os partidos, com excepção do PCP.
Todos terão de assumir as suas responsabilidades e optar por uma de duas: manter um sistema repressivo sobre as mulheres ou pôr termo ao flagelo do aborto clandestino. Não há terceira via.

Luta sem fronteiras

No dia 2 de Março de 2004, catorze organizações internacionais e 39 personalidades internacionais assinaram uma Declaração de Solidariedade Internacional onde, além de se pronunciarem solidárias com as pessoas julgadas, apelaram «a todos os órgãos de soberania, instituições democráticas e forças políticas e sociais de Portugal para que, em nome da saúde e da dignidade das mulheres portuguesas, tomem medidas urgentes e efectivas que ponham termo à dura realidade do aborto clandestino e o resolva, pondo fim à legislação que permite a perseguição, julgamento e condenação das mulheres».
Associações de Planeamento Familiar (Alemanha, República Checa, Irlanda, Itália, Espanha, Bósnia e Herzegovina, Reino Unido), a Rede Europeia da Associação Internacional para o Planeamento da Família e a Associação Marie Stopes International, do Reino Unido, foram alguns dos subscritores que responderam ao apelo da deputada Ilda Figueiredo, que tinha promovido, no Parlamento Europeu, um outro apelo junto de 104 deputados (de 5 cinco grupos parlamentares de 13 países) «à Assembleia da República para que encare o problema do aborto clandestino e o resolva, pondo fim à legislação que condena as mulheres».
No cenário europeu, Portugal continua, a par da Irlanda, a ter uma das legislações mais restritivas em matéria de aborto, contrariando recentes recomendações internacionais, nomeadamente das Nações Unidas e do Parlamento Europeu que, em 2002, recomendava numa resolução aos Estados-membros da União Europeia que «a interrupção voluntária da gravidez seja legal, segura e universalmente acessível» e «exorta os Estados de se absterem, em quaisquer circunstâncias, de agir judicialmente contra as mulheres que tenham feito abortos ilegais».

Despenalização do aborto
nos países da EU


1967 – Reino Unido
1970 – Finlândia
1973 – Dinamarca
1974 – Áustria e Suécia
1975 – França
1978 – Itália e Luxemburgo
1981 – Holanda
1985 – Espanha
1986 – Grécia
1990 – Bélgica
1992 – Alemanha

Em Portugal...

      A mulher grávida que abortar é punida com prisão até 3 anos.
      O aborto não é punível no caso de: «doença grave incurável ou malformação congénita (até 24 semanas», «crime sexual (16 semanas)», «evitar perigo de morte ou grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher (até 12 semanas)», «remover perigo de morte ou grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher; fetos inviáveis (sem limite temporal)».



Mais artigos de: Em Foco

Um crime contra a dignidade humana

Os comunistas, dentro e fora da Assembleia da República, continuam a sustentar com firmeza a exigência de se enfrentar, com coragem, o problema do aborto clandestino e de terminar com a criminalização que ofende os mais elementares valores humanos e civilizacionais e representa uma intolerável agressão e ameaça às mulheres portuguesas. Em entrevista ao Avante!, Fernanda Mateus, da Comissão Política do PCP, defendeu a aprovação de uma lei de despenalização do aborto, sendo indispensável que se desenvolva um vasto movimento de opinião que, entre outras finalidades, pressione os deputados nesse sentido.

Aprofundar os direitos <br>da maternidade e paternidade

A abordagem da problemática da família é matéria sobre a qual o PCP sempre intervém com as iniciativas que tem considerado em cada momento mais adequadas, quer no que se refere ao aumento dos salários dos trabalhadores quer em iniciativas de aperfeiçoamento de mecanismos legais de protecção dos trabalhadores em função da maternidade e paternidade, de garantia de direitos das crianças e jovens e de melhoria da qualidade de vida dos idosos.

Por uma maternidade consciente e responsável

A garantia de uma interrupção voluntária da gravidez, a pedido da mulher e até às 12 semanas, em condições de segurança, é parte integrante da promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, constante em múltiplas recomendações internacionais. Entretanto, foi criado o Movimento pela Despenalização do IVG que exige a despenalização do aborto a pedido da mulher até às 12 semanas. Neste sentido, um pouco por todo o País, recolhem-se assinaturas pelo direito de a mulher optar livremente por uma maternidade consciente e responsável. Este abaixo-assinado será entregue em Setembro e tem como objectivo chamar a atenção para a urgente necessidade da Assembleia da República alterar a actual lei. Estas preocupações são comuns a muitos cidadãos que, independentemente da sua opção política e ideológica, entendem que não é possível adiar por mais tempo a resolução deste problema.

Cronologia

1954 – Álvaro Cunhal, a cumprir pena de prisão, defende a tese para exame do 5.º ano jurídico da Faculdade de Direito de Lisboa com o tema «O aborto, causas e soluções».1973 – 1.º Encontro do MDM onde «o direito das mulheres ao planeamento familiar e ao aborto nas melhores condições, de forma a não afectar a sua saúde e...

Aborto clandestino <br>Uma violência sobre as mulheres

Após as eleições legislativas antecipadas, que se realizaram em 2004, o PS optou por usar a sua maioria parlamentar ao serviço da insistência de referendar o aborto, em vez de o despenalizar no órgão de poder com competências para tal – a Assembleia da República.